06 dezembro 2006

Democratizando a informação

Comunicação: acesso deveria ser público e aberto?

O passado recente do Brasil ensina que o Estado é uma desgraça como provedor de qualquer coisa. Será que é, ou precisa ser, sempre assim? Principalmente para infra-estruturas que, por outro lado, parecem ser naturalmente públicas?...
Imagine, por um breve momento, que todos os prédios da cidade estão ligados à rede de infra-estruturas municipais. Dela fazem parte as ruas, o metrô, as encanações de água, esgoto e gás e os sistemas de eletricidade e comunicações. Como assim? Da cidade não são apenas as ruas, quando muito? Não, cidades já fizeram mais, até no Brasil; foram instituidoras e proprietárias, em muitos casos e por longo tempo, de sistemas de comunicação. Em Arcoverde, PE, na década de 60, era assim, até a estadualização e nacionalização impostas pelo golpe de 64.
Vamos, pois, voltar a pensar: o que são as ruas, numa cidade? Seriam redes de acesso, locais, públicas e abertas?... Certamente são locais, de acesso aos mais diversos pontos do local, conectadas, aqui e ali, a troncos rodoviários.
São bens públicos, no sentido econômico: todos se beneficiam de sua existência, ao mesmo tempo em que nenhuma entidade individual receberia benefícios suficientes para provê-las de forma universal. E são abertas, porque todo e qualquer tipo de serviço pode ali ser realizado -- por agentes de mercado, inclusive e principalmente --, de forma competitiva, mediante o pagamento de taxas -- públicas e transparentes -- para manutenção e evolução da infra-estrutura.
Essa, pelo menos é a teoria das ruas. Estamos fartos de saber que ruas estão cheias de buracos e sem sinalização, inundam, o dinheiro das taxas que pagamos para que existam e funcionem apropriadamente desaparece com freqüência e por aí vai. Mas não é assim em todo lugar e não precisa sê-lo, aqui, para sempre. Na Suécia, onde este artigo foi escrito, os carros em que andei não toparam com um simples buraco e os sinais de trânsito funcionavam todos... e o motorista do táxi, às 5 da manhã, não cortou o sinal vermelho, no meio do nada, a caminho do aeroporto.
Na Suécia, como na Islândia, Noruega, Finlândia, Holanda e outros países, “cidades” são empresas públicas e são “donas” de sua infra-estrutura, o que inclui a possibilidade de cuidar do acesso local às comunicações de forma pública e aberta. Estocolmo tem uma subsidiária só para isso, a STOKAB, cujo plano de curto prazo é levar fibra ótica a todos os endereços da capital. O que nos obriga a perguntar: o que levaria um dos mercados urbanos mais ricos do mundo [metrô, R$ 6/hora; hotel uma estrela, R$ 500/dia] a decidir pela construção de uma infra-estrutura pública de acesso banda larga?...
O metrô de Estocolmo é parte da infra-estrutura do lugar; R$ 6/hora é subsidiado por impostos urbanos entre os mais caros do mundo, porque o metrô serve a todos. O hotel não tem subsídio e por isso custa tão caro... e metade é talvez imposto, parte do qual acaba no metrô... Da mesma forma que nem todo mundo, em Estocolmo, pode ter um carro e mantê-lo na rua (e por isso o metrô), nem todos podem arcar com o custo de instalação de fibra ótica até seu domicílio ou empresa. Se a cidade não entrar no jogo, somente as maiores empresas e os bairros mais ricos terão banda larga de alta performance (e a semelhança com cidades brasileiras, então, não seria coincidência).
Resultado? Um número crescente de cidades (e não de países, nem mesmo estados) na Europa, América e Ásia está instalando banda larga (mesmo, de 100 megabit/s pra cima!) como parte da infra-estrutura do lugar e como incentivo à instalação de negócios, que podem ser tornados muito mais competitivos pela via de mais e melhor comunicação. Brigham City, nos EUA, parte de uma rede de treze municipalidades instalando banda larga, começou a fazê-lo depois de perder uma companhia responsável por US$ 23 milhões em salários na cidade de 17 mil habitantes, por falta de infra-estrutura decente de telecom... porque a incumbente de telecomunicações não via, no lugar, grandes “oportunidades comerciais”.
Aí é onde está o perigo e a real oportunidade para as cidades: as teles não vêem mais “oportunidades” no acesso local, transformado em z0mm0dity (zero-priced commodity, ou commodity de preço zero) pela internet e só irão investir – localmente -- se houver altos retornos, de preferência com baixos investimentos. Como, então, chegaremos em Saljarnarnes (Islândia), onde qualquer um, pai, aluno... cidadão, pode consultar o professor de matemática de plantão sobre juros compostos, usando áudio, vídeo e rascunho eletrônico, aplicação disponível na intranet da cidade, o professor de plantão na casa dele (talvez), a pessoa em seu negócio ou casa? Parece ficção científica; não é... Saljarnarnes é a primeira cidade do mundo totalmente ligada em fibra ótica, pela prefeitura. Parece que o povo gostou. O prefeito acaba de ganhar um segundo mandato.
O melhor é que, no caso da cidade islandesa, a municipalidade não gastou um centavo, pois a empresa de energia elétrica montou a nova infra-estrutura. Isso pode ser replicado? Sim, mas não em todo lugar. Em zonas rurais da Holanda, a equação tem outra solução: a cidade fornece a fibra, cooperativas agrícolas se unem, tratores rasgam o chão e deitam cabos, usuários marcam o terreno para evitar acidentes futuros. O futuro, aliás, é o que a fibra traz: para as crianças, centenas de megabit por segundo, em casa, significam desde conexão de alta qualidade com os amigos distantes (dois quilômetros, a dez graus abaixo de zero, é muuuito longe), com o professor de plantão, é vídeo sob demanda e jogos, em alta resolução... o que pode fazer muita gente pensar duas vezes antes de sair do campo pra cidade. No Brasil, serão outras equações para diferentes regiões e cidades.
Alta tecnologia transforma o impossível em commodity. Inovação é mudança de comportamento das pessoas como produtoras e consumidoras. Inovação acontece no mercado, causada por agentes econômicos ou mudança de regras de negócios. Alguma hora, vamos ter que reescrever as nossas regras de telecom. Aí, seria bom estabelecer condições legais, claras, para que cidades e comunidades fizessem o que as teles nunca irão fazer: usar alta tecnologia e inovação para criar ambientes onde cada ser humano possa se tornar mais capaz e o lugar, como um todo, mais, muito mais competitivo.
Se nem nos lugares mais ricos do mundo as teles estão criando infra-estruturas de comunicação, de alta qualidade e velocidade e de alcance universal, não será aqui que irão fazê-lo. Muito menos se quisermos acessos locais rápidos, públicos e abertos. As cidades e comunidades precisam assumir este papel. Isso seria inovação combinada com alta tecnologia e, acreditem, seria muito bom também para as teles, que poderiam se concentrar no que lhes dê mais retorno sobre investimento, afinal o único discurso que o capital, verdadeiramente, entende.
Se não der certo pelas vias legais, podemos partir pra desobediência civil, o que cidades e comunidades, em países mais hostis, com teles poderosas, estão fazendo. Dá uma boa briga, com resultados aparentemente muito bons, sempre; na pior das hipóteses, cria-se a consciência da importância do acesso público, aberto e universal, a infra-estruturas essenciais ao desenvolvimento sócio-econômico. Na melhor, a consciência se torna realidade e a lei muda. E todo mundo ganha...